Na esquina de um dos extremos da rua há um guarda e sua guarita. A guarita, pequena feito toda guarita, guarda a cuia, a erva, o jornal. É de pouca precisão o homem que recebe pelas horas em que acompanha o movimento dos moradores da quadra e dos passantes.
Ao lado da guarita, a casa do cachorro. Comum, de madeira, dentro dela um resto de tapete a forra, provavelmente para as noites de inverno. Ao lado dela o cão: porte médio, pelagem branca e preta, olhos vivos. Olhando-se assim, diríamos, saudável. Brinca com o vigilante (deve ouvir suas histórias), corre, passeia pelas quadras, late para os outros cães, não late para ninguém que passe pela guarita.
Dia desses, deparo com uma senhora conhecida, moradora distante de muitas ruas e quarteirões, a alimentar o cão. Penso, me parece óbvio, quantas pessoas devem alimentar o simpático hóspede da casa ao lado da guarita. De fome ele não morre. De outros cuidados, provável que não. O cão, por sua simpatia, tem casa, comida e carinho. É uma criatura de Deus, portanto, merece.
No outro extremo da rua há um amontoado de casas de madeira. Não chega a ser uma favela, mas anda perto. Não há por ali guarita, vigilante, nem casa de cachorro. Há cachorros, e muitos, e devem ter casa. O que chama a atenção é um menino. Cinco, seis anos, difícil precisar a idade nestas circunstâncias. Cobreado, magro, calções sujos, olhos vivos, ar de quê não sei exatamente. Digamos, de espera. Não errei, não: não é um ar de esperança, talvez ele nem saiba o sentido exato da palavra. É ar de espera mesmo. O que, ninguém sabe, talvez nem ele.
Vejo o menino brincar na frente das casas, próximo ao meio-fio. Brinca com latas, caixas de fósforo e outras, tampinhas de refrigerante, algo que um dia se chamou “carrinho”, um palhaço sem os braços. E outras tantas coisas que prendem a sua atenção. Não passeia pelas quadras, não conversa com outras crianças. Pelo menos que eu veja. Fica ali o menino, no seu conformismo de menino que desconhece, inclusive, o outro extremo da rua. Se o conhecesse, teria o cão por companheiro.
O que pensei, passando por ali dia desses, é que nunca vi ninguém lhe trazendo alguma coisa. Comida ele tem, com certeza. Mas, e um doce, uma bala, um calção novo, uma revista, um livro infantil? Nunca vi.
É filho de Deus também, mas é raro um sorriso em seu rosto sério.
Uns seiscentos metros separam o menino do cão. Não é muito. Quem alimenta o cão poderia presentear o menino. Mas quem sou para decifrar a alma alheia? Para questionar o que se passa no coração das pessoas? Um menino, mais dia menos dia, cobra. O cão, não. O cão viverá, hora após hora, a mesma rotina, sem a ninguém perturbar. O menino, se crescer, terá sonhos, conhecerá palavras, formará frases e, talvez, estas venham a incomodar. Quem deseja incomodação nos tempos que correm quando a vida cobra, em muitos casos, mais do que se pode oferecer?
O cão abana o rabo satisfeito com qualquer carinho ou comida. O menino fala e, quem sabe, poderá dizer “não gosto” e provocar uma desilusão enorme com o seu desdém. E quem está a fim de mais uma desilusão entre tantas que se carrega?
Ambos são filhos de Deus, mas, como se sabe, entre nós sempre há os que são mais filhos que os outros.
Napp, belo. Mais do que belo: preciso - e aqui a palavra está escolhida. Abraços, Rubem
Rubem Penz, Viamão 11/05/2010 - 11:55
...E quem está a fim de mais uma desilusão entre tantas que se carrega?
Eu estaria.
Maira Knop, Porto Alegre 10/05/2010 - 21:26
Preencha os campos abaixo.