Dezoito anos. Ela já alcançou a maioridade e um público de mais de quinhentas mil pessoas. Pois é, vizinha, que contabilizou 547 apresentações na curta temporada no Teatro Bruno Kieffer, durante a 12ª edição do Porto Verão Alegre, apresenta para quem quiser ver um drama disfarçado de comédia.
Não sei se muda alguma coisa para quem ainda não assistiu ao espetáculo Pois é, vizinha, adaptação da atriz e diretora Deborah Finocchiaro para o texto Una Donna Sola (obra dos italianos Dario Fo e Franca Rame, 1977) ou mesmo para quem já viu, saber que a peça é na verdade um grande drama. Óbvio que o texto na boca de Finocchiaro fica engraçado e que a protagonista o colore mais ainda, mas os absurdos pelos quais passa me lembram inclusive aquele quadro do “Primo rico e primo pobre”, onde rimos da desgraça do pobre e da insensibilidade do rico.
Da mesma forma, Pois é, vizinha diverte pela insensibilidade de Maria, que é a própria vítima da trama. A personagem é uma dona de casa, que provavelmente sofre de algum distúrbio psicológico, pois é maltratada, agredida e humilhada pelo marido Aldo, mas mesmo assim está sempre feliz. (Pode, arnALDO? A mulher apanha e é feliz??) Além disso, Maria é abusada e se deixa abusar sexualmente pelo cunhado doente, com a permissão do marido, em uma atitude no mínimo doentia também. Ela se acostumou à situação e acha tudo aceitável, já que tem tudo que precisa dentro de casa. O monólogo só é quebrado quando o cunhado resolve dar o ar da graça com seus resmungos, e aí você pode até se questionar se essa vizinha de Maria existe mesmo ou é apenas uma alucinação. Afinal, Ana, a hipotética vizinha, não aparece e se quer ouvimos sua voz. Quem em uma situação dessas ficaria alegre estando trancada como uma prisioneira dentro da própria casa? E que pessoa mais desprovida de sorte é Maria, pois além de ter um marido agressivo, ainda tem um vizinho sacana que a observa pela janela, um tarado que faz ligações obscenas e, para completar, o cunhado abusado? Sem contar que apesar disso tudo ainda conseguiu a proeza de fazer o professor de inglês se apaixonar por ela.. Ou será que tudo isso não passa de uma alucinação?
Enfim, foi essa a personagem que Fo e Rame construíram e a quem facilmente a talentosa Deborah Finocchiaro deu vida. Aliás, muita vida, tanta que não me espantará se daqui a uns anos a Maria gaúcha recorrer à lei da sua xará (da Penha) e fugir logo no começo do ato com o professor gato. Ela é forte e teoricamente saudável (ou louca o suficiente para fazer isso); quem sabe um dia conseguirá o grande feito e mudará a propria história? Tentei contato com Franca Rame para saber se Maria nasceu com um parafuso a menos ou se é normal, mas ela ainda não respondeu. Queria saber mais sobre a criação dela e da vizinha, afinal, se há anos era normal saber os nomes dos vizinhos e papear com eles, em pleno 2011, no máximo damos educadamente um tímido “oi” para eles. E, contraditoriamente, apesar de não ser comercial, o título da peça acaba atraindo público por todo o local onde passa e não é difícil entender o por quê: Finocchiaro é uma ótima atriz e a produção é cuidadosa. As pessoas vão para vê-la; a vizinha é conhecida por consequência, pois provavelmente o público não se identifica com o tema. Deborah aproveita para carregar o sotaque gaúcho, abusa das caras, bocas e vozes e confessa que Maria já tem muito do seu jeito também. Sendo assim, a cada ano, Maria amadurece e o público se transforma; somos todos seus vizinhos, e rir o tempo todo agora pode ser opcional.
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