“Eu jogava 87 minutos de uma partida para o time
e três para mim – e nesses três mostrava do que era capaz.”
Johan Cruyff
Sempre que me perguntam o que é importante para ser um bom cronista e, por extensão, um bom escritor, digo que é o total respeito ao texto. Quase uma veneração. Junto a isso, despir-se de vaidade: a obra deve se sobrepor à presunção do artista. Apenas a elevação de uma, com sorte, fará o outro grande. Jamais o inverso. E não é isso que vemos vez por outra.
Aprendi com o mestre Luiz Antonio de Assis Brasil a evitar as “literatices”, estruturas de efeito construídas muito mais para mostrar o escritor – do que ele é capaz, de como é culto, experiente, hábil – muito menos contribuir para a fluência e o sentido da mensagem. Pior: literatices incidem na temeridade de reproduzir evidentes clichês. Nada tenho contra estruturas plagiadas, complexas ou experimentais. Porém, é preciso cuidar a quem elas estão servindo. Fazer embaixadinhas no centro do campo quase nunca tem serventia.
Rubem Braga, utilizando-se da forma como o pavão compõe seu esplendor (água e luz), enalteceu a simplicidade intrínseca do grande artista. O belo nasce no singelo. Nosso desafio, também. A crônica existe para oferecer instantes de contemplação ao leitor mais arisco e infiel do mundo – aquele diante do jornal. Somos quem distribui o jogo, e nosso leitor nem sempre (ou quase nunca) será o artífice das grandes jogadas. Fazê-lo comemorar o gol ao final, sorrindo, é nosso compromisso. Nosso dever de ofício.
Toda essa crença, no entanto, sofreu um pequeno abalo ao ler a declaração de Johan Cruyff, na qual ele confessa deixar um pequeno espaço para si durante a partida de futebol. Para seu prazer, para testar os limites, para fazer o inesperado. Logo ele, um dos criadores do futebol coletivo! Revendo minhas posições, dou o tornozelo a torcer: um cronista tanto pode, quanto deve deixar-se iluminar por um instante. Seja numa crônica exótica ao conjunto da obra, seja numa frase de efeito. Há de fazer um bem danado!
Com habilidade e precisão, frases brilhantes podem pifar o centroavante; fazer nosso leitor sentir uma sutil vertigem de um toque mais ousado; cativá-lo para voltar no dia seguinte, na próxima semana. E, ainda que nada disso aconteça – quando não um pequeno desastre –, seremos perdoados pelos 87 minutos de dedicação à arte. Cruyff escreveu isso com seus pés.
05/11/2019
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Comentários:
Fã incondicional do professor Ruben. Parabéns pela crônica e pelos ensinamentos que obtive fazendo seu curso. Tácito Cortes de Carvalho e Silva, Presidente Venceslau/SÃO PAULO02/01/2020 - 15:49
Parabéns caro Mestre. Admiro sua genialidade. Sempre voltarei. Abraço. MARISA DA GRAÇA BURIGO, PORTO ALEGRE27/11/2019 - 12:54
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Rubem Penz
Publicitário, escritor e músico. Orientador da oficina literária Santa Sede, crônicas de botequim - projeto iniciado em 2010 com, em 2018, 14 publicações e dois prêmios (Açorianos de Literatura como Destaque Literário e Livro do Ano AGES com A persistência do amor, Ed. Buqui). Entre outros veículos, foi colunista do Metro Jornal entre 2012 e 2018. Compõe o Conselho Editorial do IEL e o corpo docente da Metamorfose, StudioClio e Casamundi Cultura. Entre os livros publicados estão O Y da questão (Literalis), Inter Pares (Literalis), Enquanto Tempo (BesouroBox) e Greve de Sexo (Buqui).
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