No alto da colina, exposta aos ventos loucos, debate-se uma árvore branca carregada de frutos amargos. Pelas suas raÃzes trafega a seiva extraÃda de um terreno ácido, pleno de pedregulhos dourados também conhecidos como ouro dos tolos. É a árvore da solidariedade, ou melhor, a árvore da solidariedade dos tolos. Aquela cujos frutos estéreis exibem sua pieguice sob a luz da hipocrisia, não possuem o germe da reciprocidade, hÃbridos de cinismo e culpa.
A genuÃna árvore da solidariedade dança com os ventos, suas raÃzes estão vinculadas à construção de uma sociedade justa, seus frutos espalham as sementes de reciprocidade e ética. A solidariedade exige um terreno simples, pois sendo óbvia dispensa ações grandiloqüentes, que na verdade não passam de tentativas de espiar culpas ou contundentes atestados de inoperância. Não existe parentesco com a travestida aberração, solidariedade das tvs, dos jornais e das campanhas demagógicas patrocinadas por autoridades omissas.
A falsa solidariedade, ou a solidariedade glamorosa, aprecia ações terroristas, catástrofes, secas, enchentes e câmeras de tv, feito uma bola de gás não tarda a murchar. Descompromissada com o amanhã a solidariedade glamorosa não cria vÃnculos. Imediatista ou midiática, não tem olhos para o futuro, importa o agora e da sorte futura espera apenas os dividendos polÃticos. Tal como é apresentada não pode granjear crédito essa tal solidariedade e a confusão se estabelece cada vez mais sórdida, senão vejamos: o mendigo que habita as ruas precisa de solidariedade ou de mudanças sociais, os favelados que vivem sobre tubulações de gás precisam de solidariedade ou da ação dos governantes? Mas quando tudo explodir ofereceremos nossa solidariedade aos sobreviventes e nossas culpas escoarão pelo ralo do individualismo. Mas o que fazer? Ser ético em todas as instâncias é a maior e mais eficiente forma de solidariedade e se isso soar um tanto abstrato, experimente doar sangue. Mas, estejam certos, apartados da ética nos colocamos diante da mais refinada demagogia.
A editora EDIOURO lançou pelo selo Relume Dumará a História da Literatura Brasileira – Da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade. Diz Carlos Nejar na introdução: “Não existe imparcialidade, existe julgamento onde os fatores internos ou externos influem, ou vice-versa.” Mesmo assim o leitor testemunhará um trabalho onde solidariedade e ética não se desvinculam nunca. O autor, solidário com a literatura, faz um ajuste de contas onde não deixa de ser severo com seus pares e prova que ética e corporativismo não são vinhos da mesma pipa. Caberá ao leitor atento, ao longo das 565 páginas, observar a fidelidade do autor a essa afirmação. História da Literatura Brasileira é uma prateleira onde impera a diversidade, para sorte dos leitores. Temos de José VerÃssimo a Nelson Werneck Sodré, sem esquecer da Breve História da Literatura Brasileira, Erico Verissimo e a subestimada, porém elogiável, História da Literatura Brasileira: do descobrimento aos dias atuais, de Luciana Stegagno Picchio. Ainda temos Bosi, Merquior, Massaud Moisés, entre outros. Surge agora o trabalho, bastante diferenciado, do poeta, romancista, ensaÃsta e historiador Carlos Nejar.
Mas onde residiria a originalidade do trabalho de Nejar? Em vários pontos, mas vamos nos ater a alguns, os mais evidentes. A começar pela ausência do didatismo, do tom professoral, é o trabalho de um criador diante de criadores. Questiona a notoriedade de determinados escritores incensados por imprensa e Academia e recupera escritores de qualidade que habitam a margem. Percebe-se a preocupação do autor em restabelecer a ordem, fazer justiça, recuperar a verdade. História da Literatura – Da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade abarca os primórdios da literatura até a fundação de BrasÃlia, onde Carlos Nejar dá validade e estabelece um juÃzo de valor a respeito de cada escritor, segundo sua ótica, merecedor de fazer parte dessa história.
Mas a grande estrela dessa História da Literatura não é escritor A ou B, muito menos este ou aquele gênero e sim a linguagem. A linguagem determinando o gênero, nunca o contrário. A partir daÃ, Nejar trabalha a História da Literatura e esse aspecto empresta a originalidade que indagamos no começo deste texto. Por esse ângulo nossa literatura ainda não havia sido examinada. As demais histórias da literatura se ocupam dos gêneros, enquanto Nejar percebe que a linguagem é que é fator predominante tanto no romance como na poesia ou no ensaio. Desse modo o autor evita o tom burocrático onde imperam simples referências despidas de qualquer aprofundamento. Diz Nejar: “Toda História da Literatura é sempre uma antologia pessoal” e segue à risca o mandamento, cita quem julga importante, ou pelo momento histórico, ou pela obra, ou pelo movimento de que participava.
História da Literatura é a visão do artista sobre o tempo, onde ele olha o horizonte, a estética, a técnica, a arte poética, denuncia os truques e provoca a curiosidade do leitor. O autor, talentoso poeta e romancista, faz literatura ao narrar a História da Literatura. Recupera autores esquecidos como o simbolista Eduardo Guimarães, Alceu Vamosy - segundo Nejar mais parnasiano que simbolista - apresenta Campos de Carvalho e Murilo Rubião de maneira a compensar qualquer esquecimento, configurando um dos pontos mais altos desse trabalho.
Traz ao conhecimento do leitor o poeta gaúcho Carlos Heitor Saldanha, relegado a um segundo plano devido à notoriedade de Mario Quintana, chama atenção para o romance-ensaio de Viana Moog, faz justiça ao paraibano, poeta do Maranhão, José Chagas. Ao mencionar Ledo Ivo, Nejar tece crÃticas sensatas, justas - um tanto tardias - a esse acadêmico dono da lira mais insossa a assolar nossas letras. Nejar não levou em conta o fato de se tratar de um colega de ABL e lança seu olhar crÃtico sobre esse supervalorizado poeta médio. Quando fala de Ferreira Gullar, Nejar nada contra a corrente que tece loas ao Poema Sujo e elege Dentro da Noite Veloz como o melhor livro do poeta maranhense.
Mas nada acontece assim de forma breve, o autor fundamenta cada juÃzo, cada escolha. Faz ressalvas à obra de Lygia Fagundes Teles e Dalton Trevisan, entre outros, e afirma que Murilo Mendes só foi grande quando influenciado por João Cabral de Melo Neto. Importante ressaltar essa caracterÃstica da História da Literatura de Carlos Nejar: a presença da opinião, do ponto de vista de quem está dentro desse tempo, de quem colaborou para a construção desse tempo. Desse modo o autor consegue avaliar o peso da parte que lhe tocou e certas filigranas que alguns colegas utilizaram e hoje se vangloriam da luxuosa colaboração. Colaboração no mais das vezes supervalorizada por nós, jornalistas, supostos conhecedores e crÃticos das obras e do tempo.
Carlos Nejar dá justos puxões de orelha em muitos de seus colegas, mas o maior, a palmada mais dolorida coube a nós, os crÃticos, os que deveriam separar o joio do trigo. E separamos, geralmente preferimos o joio. Infelizmente para a literatura que Nejar respeita e homenageia de forma ainda não vista por estas plagas. “Não existe imparcialidade: existe julgamento onde os fatores internos ou externos influem, ou vice-versa.” Mas que fatores levaram Carlos Nejar a cometer um único deslize em sua História da Literatura Brasileira ao incluir como poeta merecedor de tal distinção o inquestionável jurista Ives Gandra da Silva Martins? Deslize único à parte, Carlos Nejar oferece ao leitor uma obra onde coloca a crÃtica da literatura e a própria literatura num patamar muito superior.
No presente volume, o autor abordou nossa literatura desde a carta famosa até o perÃodo da construção de BrasÃlia. Aguardemos, pois, o segundo volume. E que não tarde.
Texto publicado originalmente no site do Jornal Vaia
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